Tuesday, April 09, 2024

Uma História Crítica da Palavra Homossexualidade - Parte 4

Resumo: Novidade por trás do neologismo « homossexualidade ». Papel assumido por fatores estritamente científicos: o instinto sexual; a esquematização e simplificação da vida sexual (atração entre os sexos). Perversidade do termo «homosexualité» pela sua única referência ao modelo «heterossexual».

Um neologismo indesculpável, mas justificado

As seguintes linhas, que creio serem devidas a Voltaire, colocam um dos aspectos do problema que devemos abordar:

«Uma palavra nova só é perdoável quando é absolutamente necessária, inteligível e sólida: somos obrigados a criar uma na física; mas, estamos fazendo novas descobertas no coração humano? (...) Existem outras paixões além daquelas que foram tratadas por Racine, abordadas por Quinault?»

A «paixão» que chamamos de homossexualidade certamente não era nova no coração humano.  Além disso, ninguém acreditava no século passado tê-lo visto nascer, mesmo que muitos afirmassem tê-lo visto espalhar-se.

Um neologismo revelou-se, no entanto, necessário – embora este precisamente não fosse perdoável – devido à incontestável novidade do conceito.  Não podemos equiparar «o homossexual» do século XIX nem ao sodomita – por exemplo – nem ao sodomita da Idade Média, nem ao «filho da puta» dos períodos libertinos, nem mesmo ao afeminado evocado por certas obras médicas do século XVIII. Entre o «homossexual» e estas expressões há – pelo menos havia – uma diferença significativa, sobreponível àquela que separa o ser do fazer.  Quem os confunde não comete apenas um anacronismo: também entende mal o significado do verbo amar.  As palavras francesas que precederam e estas expressões há – pelo menos havia – uma diferença significativa, sobreponível àquela que separa o ser do fazer.  Quem os confunde não comete apenas um anacronismo: também entende mal o significado do verbo amar. As palavras francesas que precederam «homossexualidade» e seus sinônimos verdadeiros, na verdade, geralmente só se aplicam a comportamentos eróticos dos quais não há nada que indique que possam ser baseados em uma «força» particular e interna ao assunto em questão.  Estas palavras, aliás, não supõem qualquer análise psicológica ou pseudocientífica por parte de quem fala: os factos e os indivíduos são julgados e não estudados, segundo uma ortodoxia religiosa, moral ou filosófica. Antes da era de Casper, Ulrich, Kertbeny, a ideia de que uma heterodoxia de gosto em matéria de amor pudesse ser uma idiossincrasia, e mais precisamente que pudesse estar ligada a uma constituição psicológica, quase nunca foi expressa em parte alguma (67). Havia, portanto, algo novo por trás do neologismo homossexualidade.  Não ao do fenômeno observado, mas à criada pela natureza científica da visão assumida sobre esse fenômeno, cujas dimensões eram extensas: passamos do julgamento do comportamento erótico para a análise pseudocientífica dos sentimentos e comportamentos românticos (68). A novidade estava na grelha que serviria para interpretar um amor que parecíamos apreender, pela primeira vez, em todas as suas dimensões.

Uma homo - sexualidade?

Seria precipitado tentar embarcar aqui num estudo detalhado de todas as circunstâncias históricas em que ocorreu o nascimento do homossexualismo. Já existem alguns comentários que descrevem com muita habilidade esse contexto.  Mas, se favorecem o papel que os factores demográficos, sociais, económicos e políticos podem ter desempenhado na evolução das idéias em matéria de erotologia, estes comentários geralmente negligenciam o papel que os próprios factores desempenharam.  Haveria, no entanto, muitas lições a serem aprendidas com a análise destes.

Contentar-me-ei em tentar descrever genericamente uma corrente de idéias científicas e metafísicas que me parecem explicar a gênese da noção «de homossexualidade» e a própria escolha da palavra.

Recordemos primeiro que nesta era materialista e científica que foi a segunda metade do século XIX, toda a psicologia do amor poderia ser deduzida de um simples estudo do «instinto sexual». Schopenhauer, cujas obras começaram a alcançar considerável sucesso por volta de 1850, reduziu o amor a um meio inventado pelas espécies para garantir a sua reprodução (69).  Parece que ninguém pensa em opor o menor argumento ao filósofo alemão quando defende esta tese de que «toda inclinação amorosa, por mais etérea que seja sua aparência, enraíza-se apenas no instinto sexual, e é apenas um instinto sexual mais claramente determinado, mais especializado e, estritamente falando, mais individualizado.» (70).  Os positivistas sublinham o mérito desta Metafísica do Amor, mérito que, segundo eles, é colocar a questão, em termos racionais e objetivos, no domínio científico, e mais precisamente no da biologia. 

“Schopenhauer atuou em todos os lugares como biólogo”, escreveria mais tarde Théodule Ribot sobre esse assunto.  Portanto, geralmente aceitamos como uma idéia cientificamente estabelecida que o amor vem do sexo e que é apenas um nome que demos, por gosto pelas metáforas, ao «instinto sexual».

O que é exatamente o «instinto sexual»? Esta noção desenvolveu-se e evoluiu durante o século XIX, à medida que uma série de novas ideias fundamentais se espalharam. Foi necessário, para que o conceito de «homossexualidade» se desenvolvesse que concebemos o instinto sexual como um impulso inato baseado na organização de um centro nervoso especializado - que era suscetível, como qualquer órgão, de ser afetado por malformações, ou de sofrer uma evolução ou uma involução.  No entanto, tal concepção só foi inteiramente possível na segunda metade do século XIX, em particular depois de Bouillaud e Broca confirmarem as idéias de Gall sobre a heterogeneidade funcional do cérebro.  Tornou-se então possível admitir que seres que parecem, pela sua aparência externa, conformados normalmente, sofrem de uma alteração localizada – e que poderia ser única – de um hipotético centro cerebral que rege o «institnto sexual».

Existem, no século XVIII e no início do século XIX, portanto anteriores ao nascimento do homossexualismo, algumas descrições não psiquiátricas de assuntos que passariam hoje por «homossexuais».  Tais sujeitos, ao contrário do que acontecerá mais tarde, não são considerados diferentes dos outros pela sua constituição: não podemos imaginar que o instinto se modifique na sequência, por exemplo, de uma malformação do seu substrato nervoso.  Apenas a expressão deste instinto deveria ser perturbada.

Estas considerações são, em particular, as de uma observação médica que, creio, foi esquecida há muito tempo e que merece ser aqui recordada.  Este é um caso relatado no ano XIII do calendário republicano (71) por Jean-Louis Alibert.  A data por si só não torna esta observação interessante: Existem vários outros motivos que a favorecem e a tornam digna, apesar da sua brevidade, da nossa atenção: em primeiro lugar, o facto de ser relativamente conhecida no mundo médico, uma vez que a consideramos citado e até reproduzido em vários trabalhos que tratam de «anafrodisia» ou de «impotência moral»; depois, a personalidade do observador, o Barão Jean-Louis Alibert (1768-1837) que não é, no que diz respeito ao conhecimento científico – e às autoridades médicas – do seu tempo, um marginal, pois já foi membro de várias sociedades científicas europeias, será nomeado, em 1820, membro da Academia de Medicina, que um decreto real acabara de criar; finalmente, os termos usados nesta descrição que lembra o significado original da palavra «perversão» no uso que dele fazem os fisiologistas (72).  Atribuo particular importância a este último ponto: parece-me útil recordar, neste exemplo, ao testar a «homossexualidade», que as palavras não são sempre inocentes.

O caso é o de um pintor de trinta anos que, tendo-se dedicado desde cedo ao «triste prazer da masturbação», tinha impedido de «nele se desenvolver o menor germe da inclinação que atrai um sexo ao outro» e que pelo contrário sentiu «uma emoção extraordinária» diante «da beleza das formas do homem», beleza ideal que «nele excitava as sensações voluptuosas». É assim que Alibert, que se preocupa em distinguir a paixão de seu paciente do «gosto dos sodomitas» (73), interpreta os fatos: «No que me diz respeito, vi nesta doença apenas uma perversão do apetite venéreo, e pensei que a indicação mais urgente era substituir a natureza desviada no seu verdadeiro tipo (...). Não houve, portanto, nem destruição nem alteração essencial da sensibilidade física, mas sim um desvio desta faculdade do organismo

Alibert imagina uma distorção do apetite venéreo.  Félix Roubaud, que, muito mais tarde, relatou este mesmo caso (74), deu, de forma mais explícita, interpretação idêntica.  Nem um nem outro imaginam esse apetite invertido, pela inversão de um «instinto sexual» todo-poderoso que normalmente precipita, de forma infalível e inexorável, o sexo masculino em direção ao sexo feminino.  Isto porque ainda não desenvolvemos, na sua época, esta idéia que é ao mesmo tempo esquemática e monolítica do instinto sexual, uma idéia que parece uma regressão à luz dos «instintos laboriosos pelos quais os animais se multiplicam e preservam suas espécies através do acasalamento» tais quais são descritos, em 1770, por Reimar (75). O final do século XIX também foi muito longe na esquematização e simplificação da vida sexual.  Basta notar a popularidade das chamadas teorias da «atração entre os sexos» para obter uma visão geral. Essas teorias, modeladas em modelos fornecidos pela física desde Newton e Coulomb, orientaram implicitamente um bom número de reflexões sobre os temas da sexualidade e do amor. Alguns autores chegaram a explicá-los detalhadamente e de forma totalmente formal, na forma de leis (76). Por mais ingénua que possa parecer a seguinte formulação, que devemos ao Doutor Antoine Ritti, podemos, no entanto, considerá-la aceite por todos:

«A vida sexual está sujeita a uma lei análoga à da eletricidade e do magnetismo; na verdade, os sexos com nomes opostos se atraem, enquanto os sexos com o mesmo nome se repelem.» (77). Doutor Ritti continua logicamente:

«Este é o estado normal; mas existem fatos, necessariamente patológicos, onde vemos que os sexos com o mesmo nome se atraem ao mesmo tempo que os de nomes opostos se repelem? Westphal publicou dois deles sob o título “Die contrare Sexualempfindung”, que traduziremos provisoriamente como “a atração por sexos semelhantes

Este contexto singular, esta forma esquemática e tendenciosa de compreender a realidade do amor intermasculino ou interfeminino baseado em noções simplificadoras – se não simplistas – sobre o «instinto sexual» explicar plenamente a escolha de uma palavra completamente desconcertante e completamente absurda: homossexualidade.  O termo não faz sentido porque, biologicamente falando, não existe homossexualidade (78). A natureza conhece apenas uma sexualidade: aquela que envolve dois sexos diferentes e que garante a reprodução – chamada precisamente sexual – de espécies animais e vegetais. Não há dúvida, porém, de que vimos na homossexualidade uma sexualidade em todos os aspectos simétrica à heterossexualidade. Ser-me-á objetado que estou aqui brincando com as palavras e que, em particular, estou concedendo ao termo sexualidade apenas um dos diferentes significados que ele pode ter, precisamente aquele que não estava presente naquele momento. fim do neologismo atribuído a Kertbeny.  Nada é menos certo.  Uma série de detalhes atestam o contrário: a forma como tivemos que escrever homossexualidade ou homossexual em duas palavras ligadas por um hífen: a qualificação do «ato homossexual» (79) geralmente concedida a esta falsificação de coito que é pedida pelos mesmos autores que reservam as expressões «onanismo recíproco», «onanismo a dois», «onanismo mútuo» a toda outra troca erótica interviril; o abandono do homossexualismo em benefício da homossexualidade; a busca de uma finalidade biológica para o homossexualismo realizada desde o único ponto de vista da reprodução da espécie: como explicar que poderíamos ter recorrido a argumentos de natureza teleológica seja para condenar ou para legitimar o amor interviril, senão por uma identificação total deste amor com a sexualidade?

Parece-me, portanto, difícil negar que as palavras homossexualidade e heterossexualidade testemunham uma crença implícita na existência de duas sexualidades simétricas, uma das quais seria, no nível reprodutivo, um impasse.

Na época em que Platão compôs seu Fedro, o que a palavra pederastia significava para os gregos? Se nem sempre evocava cristalizações de uma beleza moral superior, pelo menos evocava um deus-criança, Eros, uma paixão, um amor e uma paixão «a querida imagem de garotos».  O que sugere o neologismo de Ulrichs, o uranismo? Através da sua referência a Platão e à Afrodite Ouraniana, recorda um esforço de explicação poética do Amor, que é desculpado pela incapacidade do homem de se compreender plenamente.  O que a homossexualidade nos faz pensar hoje em dia? Tem função fisiológica, reprodução e falha dessa função. Quando este termo não é percebido como um absurdo – o que é – traz muito logicamente as noções de aberração e patologia. Estamos longe da Afrodite celestial.

Significados de bobagem

Que significados esse termo tem hoje? E quem, além dos lexicógrafos, se preocupa com isso? Os primeiros envolvidos são os próprios «homossexuais» para quem expressa sua identidade. A confissão crucial, formulada pela primeira vez internamente «eu sou homossexual» muitas vezes constitui o culminar de um período crítico de questões em torno do significado desta palavra.  Durante esta fase de crise, o sujeito em busca de uma identidade é levado a confrontar a idéia que tem de si mesmo com um certo número de imagens, definições implícitas que a sociedade lhe dá da «homossexualidade» e dos «homossexuais».  Talvez possa referir-se a definições explícitas destas noções: muitos adolescentes ou pré-adolescentes sabem «o estágio do dicionário».  Em qualquer caso, o desenvolvimento de uma representação pessoal do conceito da «homossexualidade» é um processo que pode ser longo porque requer a integração de um certo número de experiências individuais, de factos culturais que são todos dados ambíguos e por vezes contraditórios.

Porém, nesta pesquisa, essas questões sobre uma possível «identidade homossexual» operam em torno de um absurdo que sugere a existência de uma realidade onde existem várias realidades muito diferentes. As definições dadas à «homossexualidade» em obras especializadas ou dicionários de línguas são elas próprias flutuantes: num século, a evolução foi profunda. Kertbeny (80) certamente ficaria surpreso se pudesse aprender sobre o uso que hoje é feito de seu neologismo.  Eu ficaria feliz em imaginá-lo parodiando La Rochefoucauld: «A homossexualidade dá nome a uma infinidade de negócios que lhe são atribuídos e nos quais não tem mais participação do que o Doge no que se faz em Veneza Isto porque de facto emerge dos dois documentos anônimos de 1869 uma idéia precisa – e essencialmente muito clássica no final do século passado – de homossexualismo, uma idéia bastante distante daquela que geralmente fazemos hoje.

Para o escritor húngaro, o homossexualismo é uma tendência inata, uma fantasia da natureza, caracterizada não só por uma atração psíquica e sexual por pessoas do mesmo sexo, mas também por uma aversão por pessoas do sexo oposto.  Num trecho de sua primeira carta aberta, Kertbeny demonstra ainda que, nos homens, essa atração homossexual tem como objeto a virilidade; em particular, tal forma de amor não é de forma alguma acompanhada de um gosto específico pela imitação do coito (81) que a maioria dos homossexuais, por razões estéticas, abomina, e o que é mais vício, refinamento heterossexual.

Há, nessas afirmações, pelo menos dois pontos que foram considerados fundamentais em relação às definições de homossexualidade (82). A primeira diz respeito à questão – sempre formulada de forma inadequada – da «perversão congenital» ou da «perversidade adquirida».  A segunda diz respeito à relação entre queerness e homossexualismo masculino, um problema que nunca foi tão debatido como na Alemanha, e do qual encontramos vestígios na maioria dos trabalhos que tratam do assunto (83).  Não esqueçamos que, do outro lado do Reno, tudo o que foi dito ou escrito sobre a «homossexualidade» no mesmo momento onde nascia o conceito, foi realizada em circunstâncias muito específicas, dominadas por discussões jurídicas, no centro das quais estava, aliás, uma expressão ambígua (84).  Em qualquer caso, o que nos importa destes problemas são apenas as suas consequências terminológicas: muitos autores quiseram introduzir nuances entre certas palavras com base no carácter congênito ou adquirida a «inversão» que se supunha estar associada a práticas sexuais (neste caso, pedagógicas ou não). Daí resultou uma confusão quase inextricável, somando-se essas nuances àquelas já estabelecidas em outras bases.  Compreenderemos a complexidade do problema quando soubermos que estas discriminações foram feitas numa época em que a palavra homossexualidade ainda era pouco utilizada, e que à medida que o uso desta última se generalizou, foram mais ou menos recuperadas ao seu nível.  Surgiram então as expressões antagônicas da homossexualidade adquirida e da homossexualidade congênita, da homossexualidade ativa e da homossexualidade passiva, às quais se somaram - às vezes em novas considerações teóricas - a homossexualidade exclusiva, preferencial, ocasional, tardia ou retardada, latente, manifesta etc. Mais interessantes, do ponto de vista que nos interessa, são as noções de homossexualidade autêntica e de pseudo-homossexualidade introduzidas no início do século por Iwan Bloch: se marcam o desejo que certos autores tiveram de reafirmar fortemente a tese da existência de uma constituição psicológica homossexual, também atesta o que o uso extensivo do rótulo «homossexualidade» em diversas situações começou a fazer com que a palavra perdesse o significado inicial e a consistência.

Em contraste com as concepções de Kertbeny estão as de Kinsey, tal como expostas num relatório que causou alvoroço nos Estados Unidos na altura da sua publicação e que foi recebido muito favoravelmente pelas várias «minorias sexuais».  Num capítulo consagrado às «atividades homossexuais» (85), Kinsey e seus colaboradores se manifestam contra uma categorização abusiva de «mundo sexual» que isola e opõe os homossexuais, por um lado, e os heterossexuais, por outro.  Através de uma abordagem efectivamente estranha aos dados estatísticos recolhidos, e que o rigor científico não autoriza, os autores do relatório negam a existência de «homossexuais» — em vez de terem que ignorar isso —: não existem homossexuais, existem apenas comportamentos homossexuais.

Quase todo mundo conhece hoje a «escala de classificação da heterossexualidade e da homossexualidade» onde, curiosamente, encontramos, aplicada ao comportamento sexual, uma ideia que Hirschfeld utilizou em relação às características sexuais somáticas e psicológicas: «O mundo vivo é um continuum em seus menores aspectos».

A partir de Kinsey, a palavra homossexualidade, por longo tempo se afetava a uma «constituição», tenderá cada vez mais a designar apenas um único comportamento, expresso em termos estatísticos.

Ao mesmo tempo, a palavra foi esvaziada de um componente que pensávamos incluído na sua definição: o amor.

A primeira definição dada a este termo pelo dicionário Larousse (48) foi esta: «Perversão do instinto sexual, que faz com que certos indivíduos tenham uma inclinação romântica por pessoas do mesmo sexo.» Em 1940, o Novo petit Larousse ilustrado definiu ainda o substantivo e o adjetivo homossexual da seguinte maneira:

«Quem sente paixão por uma pessoa do seu sexo» (86). Um pouco mais tarde, essa definição tornou-se:

«Quem experimenta uma afinidade sexual com pessoas do seu próprio gênero» (87).

Le Petit Robert substitui, por sua vez, «afinidade sexual» por uma fórmula mais explícita: «apetite sexual» (88).

Não é de surpreender, nesta perspectiva, que a palavra homossexual tenha para muitos o significado de sodomita, no significado moderno, ou seja, restrito, desta palavra.

Mesmo que a comparação seja injusta, devemos comparar esta evolução com a mudança de significado sofrida pelo termo pederastia, que sabemos que assumiu, na medicina legal, e particularmente no século XIX, o significado exclusivo de pedidicação.

Malícia da palavra

O amor interviril, nas suas expressões emocionais e sexuais, é imemorial.  Ninguém contesta que é uma realidade antropológica universal (89). A «homossexualidade» por outro lado, é apenas uma expressão sociocultural recente e complexa: a das sociedades ocidentais modernas ou ocidentalizadas (90). A palavra é perversa no sentido de que reflecte uma compreensão distorcida e desvalorizadora deste amor: ao situá-lo paralelamente à «heterossexualidade», quer dizer, para empregar um pleonasmo, à sexualidade reprodutora, ele faz uma cópia, uma falsificação, um subamor.  O que mais parece caracterizar esta forma moderna de amor interviril que é a «homossexualidade» é a sua referência perpétua ao modelo «heterossexual» e a sua incapacidade de conceber o casal viril fora dele.

Todas as minorias estigmatizadas têm consciência de que o ostracismo ou a perseguição de que são vítimas ocorre também através das palavras que as nomeiam.  O homossexual parece desempenhar um papel inteiramente consistente com esta regra geral.  Objectifica preconceitos, transmite e perpetua estereótipos sólidos que são armadilhas em que caem naqueles que se afirmam, através do processo de identificação: «homossexuais».

Substituir este rótulo por outro, como desejam fazer os movimentos de libertação americanos, não é tratar o mal, mas criar uma diversão, por um tempo.  Por mais positivo que possa parecer aos olhos de quem o utiliza, gay não será mais do que mais um rótulo, que dará origem e legitimará outros estereótipos.  E pode apostar que os estereótipos do futuro não serão melhores do que aqueles que nos incomodam hoje.

A única atitude séria a este respeito seria garantir que esse preconceito que é o termo homossexualidade desaparecesse e garantir que não fosse substituído por nenhum outro.

Seria lutar antes de tudo pelo triunfo da verdade, a verdade escondida neste termo que tantas pessoas concordam em considerar ridícula.

Porque se aplica sem discriminação a uma série de coisas que são muito diferentes umas das outras, a palavra homossexualidade é um obstáculo à compreensão do que deveria abranger.  Sugere a singularidade de uma realidade multiforme que as mentes honestas têm toda a dificuldade do mundo para compreender.

Sem ele, teríamos hoje alcançado um nível de conhecimento menos avançado no campo das ciências humanas?

Freqüentemente aplicamos, no que diz respeito a espécies animais que sabemos terem evoluído muito pouco ao longo dos últimos milhões de anos, a expressão pictórica de «fósseis vivos».  Esta qualificação parece inteiramente adequada ao termo homossexualidade, que sobreviveu cento e doze anos, mantendo claramente a marca deixada pela época que o forjou: esta palavra é uma espécie de fóssil, o testemunho de uma reflexão ultrapassada sobre o «instinto sexual» e sobre o amor.  Mas é um fóssil que infelizmente está vivo demais.

Deixemos isso para os paleógrafos dos tempos vindouros.

Notas:

Sou grato ao Sr. Courouve por me apontar um erro que cometi (e que muitos autores cometeram antes de mim) em relação à data de publicação do famoso artigo de Westphal: É 1869 e não de 1870. O erro vem de uma particularidade da edição do volume II do Archiv für Psychiatrie: 1/3 em 1869; 2/3 em 1870. O artigo de Westphal está no primeiro terço.

(67) Poderíamos citar como exceção este exemplo de comentários feitos por um contemporâneo de Luís XIV, o Abade Caretto, que nos pedia que tivéssemos compaixão por pessoas que partilhavam os gostos do Marquês de La Vallière, «porque homens de inclinação semelhante nascem com isso, como poetas com rima». (Primi Visconti Mémoires sur la Cour de Louis XIV). Na realidade, a inclinação em questão é, como o contexto indica inequivocamente, a dos sodomitas.

(68) Parece que descobrimos, de facto, no final do século XIX, que «pederastas» são capazes de sentimentos amorosos: as confissões de «sodomitas» traz lágrimas a Mantegazza, que descobre a «sodomia psíquica» (L'amour dans l'humanité, 1886, p. 117).  A publicação de Tardieu em 1867 das ternas e poéticas efusões de um pederasta certamente terá mais consequências no desenvolvimento do conceito de significado sexual contrário do que o resto de sua obra (5ª edição e edição subsequente de seu Estudo médico-legal sobre agressões indecentes): Westphal citou esta confissão em sua publicação de 1869.

«Acreditaríamos que existe amor entre esses brutos?» Pierre Delcourt se surpreende com esse mesmo caso relatado por Tardieu (Le vice à Paris. 1887, p. 312).  Notemos de passagem que na maioria das observações que se seguem, estes sentimentos românticos são (também) dirigidos a rapazes ou adolescentes.

(69) A. Schopenhauer – O mundo como vontade e como representação. Suplementos ao Quarto Livro. XLIV Metafísica do amor.

(70) Tradução de Marianne Simon. União Geral de Edições. 1964.

(71) O ano XIII vai de setembro de 1804 a setembro de 1805. A observação encontra-se no volume II de: J. L. Alibert – Novos elementos de terapêutica e questões médicas. pp. 615-618.

(72) A palavra perversão, aplicada ao apetite venéreo, refere-se a um dos quatro principais tipos de alteração que uma função do organismo pode sofrer: 1-Abolição. 2-Enfraquecimento. 3-Perversão. 4-Exaltação. Roubaud usa muito claramente a palavra perversão neste sentido. Mais tarde, Lacassagne e seu aluno Chevalier, por exemplo, utilizariam um esquema derivado deste para classificar «desordens e anomalias do instinto sexual».  Neste contexto, a palavra perversão é sempre usada sem referência à moralidade. Ao mesmo tempo, Sérieux distinguiu a perversão (doença) da perversidade (vício), seguido por Laupts que brincava com as palavras: «A inversão adquirida é uma forma de perversidade, a inversão inata é perversão, ou seja, perversidade adquirida.» Krafft-Ebing tenta distinguir a perversão em relação aos objetivos da natureza da perversidade dos atos (aberração moral). Moll aprova e ressalta que um dos méritos do psiquiatra alemão é ter separado essas duas noções. H. Ellis está indignado com o uso da palavra perversão que «implica um julgamento moral» e que «nos vêm de uma época anterior à investigação científica e médica da sexualidade».

Quando em 1912, E. Dupré definiu as «Perversões instintivas» que as chamam de «monomanias instintivas» de Esquirol, o lugar, senão a amálgama é feita entre a «perversão dos instintos» e «perversidade moral».  Dupré incidentalmente usa as expressões «perversidade instintiva» e « perversidade dos instintos».

(73) Alibert estabelece esta distinção porque, segundo seu paciente, esta paixão «não pode ser provocada pelo aspecto de qualquer homem vivo».  O modo doloroso que A maneira dolorosa como esse paciente vivencia sua «situação ignominiosa» («Estou morrendo de tristeza e vergonha») nos permite fazer hipóteses e distinguir entre o que ele admite e o que ele não pode admitir.

(74) Félix Roubaud – Traité de l'impuissance et de la stérilité chez l'homme et chez la femme. 1855.

(75) H. S. Reimar – Observations physiques et morales sur l'instinct des animaux. 1770. Reimar distingue, na classe que nos interessa, cinco «instintos industriosos» incluindo: «conhecimento distintivo de sexo e espécie», «a indústria procura e encontra a posição mais conveniente para o acasalamento e garanta peças sexuais» e «o amor e a complacência que os animais acoplados mutualmente um pelo outro».

(76) Julien Chevalier – Une maladie de la personnalité : l'inversion sexuelle. 1893.

(77) A. Ritti – De l'attraction des sexes semblables. (Perversion de l'instinct sexuel) Gazette hebdomadaire de médecine et de Chirurgie. 1878.

(78) A maioria dos biólogos, contudo, não é muito sensível ao abuso de linguagem e não hesita em usar a palavra homossexualidade.  Talvez o uso mais desconcertante e ao mesmo tempo mais cômico que se tenha feito deste termo se encontre nas descrições que os entomologistas deram, já há alguns anos, de alguns casos muito curiosos de inseminações extragenitais específicas de alguns hemípteros, inseminações que também podem ser realizadas (esterilmente) entre machos.  Pierre de Latil, referindo-se à obra de Jacques Carayon e descrevendo uma situação, se não muito perigosa, pelo menos não necessária, escrita no jornal « Le Monde »:

«Este é certamente o único caso conhecido de homossexualidade que é seguido de fertilização».  (O caso em questão é quando um macho, inseminado por outro macho, por sua vez insemina uma fêmea um pouco mais tarde, podendo os óvulos desta última ser fecundados pelos espermatozóides dos dois copuladores.)

(79) «O ato homossexual por excelência é o ato de sodomia», escreve Ida Nelson.  Este é o leitmotiv da sua tese: A saída sem preocupações. Essai d'interprétation homosexuelle. Ed. Honoré Champion. 1977.

(80) Gostaríamos de compreender que é por conveniência de escrita que utilizo o nome de Kertbeny onde, a rigor, devo escrever ao autor anónimo dos dois documentos publicado em Leipzig em 1869.

(81) Esta é a expressão usada por Kertbeny para pedidicação.

(82) Quanto à aversão ao sexo oposto, dificilmente me parece ter sido enfatizada com força, como definindo rigorosamente a «homossexualidade» que por Hirschfeld.

(83) Muitas obras do final do século passado apresentam o «uranista» como execrando a «pederastia».  Outros, mais tarde, teorizam sobre a «analidade».

(84) Die widernatürliche Unzucht poderia com efeito dar lugar a ao menos duas interpretações diferentes, a que é igualmente o caso, em 1981, do «ato impudico e contra a natureza» do Código Penal Francês.  Numa brochura dedicada à incriminação criminal do homossexualismo em França, o Sr. Courouve mostra que tendo dado a esta última expressão o sentido restrito da pedagogia, distorceu o argumento dos deputados socialistas no seu recente apelo ao Conselho Constitucional relativamente ao n.º 2 do artigo 331.º (Contre nature ? Paris. Claude Courouve. 1981.)

(85) A. C. Kinsey, W. B. Pomeroy, C. E. Martin – Le comportement sexuel de l'homme. Ed. du Pavois. 1948.

(86) Nouveau petit Larousse illustré. 1940.

(87) Nouveau petit Larousse. 1971.

(88) Paul Robert – Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. 1978.

(89) No entanto, devo citar a tese de um autor neozelandês segundo a qual o homossexualismo era desconhecido dos Maoris antes do seu contacto com a civilização européia.  Esta conclusão é tirada de considerações mitológicas e históricas e, o que é mais interessante para nós, baseia-se num argumento linguístico que se resume a isto: A palavra sodomia não tinha equivalente na língua Maori, tal como a expressão masturbação mútua. (L. K. Gluckman – Transculturel consideration of homosexuality with special reference to the New Zealand Maori. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry. 1974, 8, 121-5.)

(90) Me parece aberrante empregar como se faz comumente, o termo homossexualidade sobre outras culturas ou épocas diferentes da nossa.

Arcadie n°328, Jean-Claude Féray, avril 1981

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