O país mais vasto do mundo conta 145 milhões de habitantes, mas enfrenta uma grave crise demográfica. Os nascimentos estão em baixa, o número de mortes está aumentando, enquanto regiões inteiras, tais como a de Veliki Novgorod, estão vendo os seus habitantes irem embora.
Por Marie-Pierre Subtil
Doze dias após o Ano Novo, Micha ainda estava bêbado. Tão bêbado que os seus parentes o trancaram e o vigiaram para impedir que ele fosse beber em outro lugar. Mas a falta de álcool falou mais alto, e ele tentou descer pelo terraço. As suas acrobacias acabaram três andares abaixo. Deitado num leito do hospital de Veliki Novgorod, com o crânio enfaixado, e os braços e uma perna engessados, Micha exibe um sorriso de satisfação ao ouvir o médico contar a sua história. Aos 49 anos, o sobrevivente vive como se fosse uma hora de glória aquilo que poderia ter sido a sua última hora. Contudo, na teoria, ele deveria constar entre as vítimas de morte violenta que, na Rússia, alimentam estatísticas demográficas catastróficas.
Entre 1965 e 2001, a mortalidade provocada por assassinatos, suicídios, acidentes do trânsito, envenenamentos e outras causas violentas mais que duplicou. A esperança de vida dos homens (58 anos) é a mais baixa da Europa. Na região de Veliki Novgorod, ela é ainda mais reduzida (56 anos). "No plano demográfico, esta é uma região típica do norte da Rússia", indica um funcionário local. Este território de florestas e de lagos não está particularmente afastado - Moscou fica a 500 quilômetros, São Petersburgo a 200 quilômetros, o que é muito pouco neste país imenso (de 17 milhões de quilômetros quadrados, o dobro do Brasil e 31 vezes o tamanho da França) - mas, numa superfície mais extensa que a da Suíça, vivem apenas 700 mil habitantes.
Em 2003, a região perdeu cerca de 10 mil habitantes: 16.233 mortes foram registradas para 6.486 nascimentos. Isso equivale a dizer que a relação se inverteu desde os anos 50; com efeito, naquela época, havia 16 mil nascimentos para 6 mil mortes. Neste ritmo, dentro de algumas décadas, só restarão os caçadores e os ursos. As previsões? "Elas existem, porém elas não são boas", admite o vice-governador da região, que se recusa a entrar nos detalhes.
"A criança é um fardo"
Desde o recenseamento de 1989 até o de 2002, o conjunto da população russa diminuiu de 1,8 milhão de habitantes, para se estabelecer em 145,2 milhões. Se não houvesse a imigração, a queda seria três vezes superior. Neste ritmo, os especialistas da ONU estimam que o país mais vasto do mundo não deve contar mais de 101,5 milhões de habitantes em 2050. Os resultados do censo mais recente, que acabam de ser divulgados oficialmente, mostram também que esta evolução vem acompanhada por uma desertificação das zonas rurais, as quais estão confrontadas ao envelhecimento de sua população.
"Na nova Rússia, a criança é um fardo", afirma Constantin Demidov, um advogado de 33 anos com dois filhos. Assim como a sua mulher, Eleonora, ele gostaria de ter três. Mas, será que existe, no meio em que eles vivem, uma única família de três filhos? Eles olham um para o outro, tentam se lembrar. "Não, nenhuma. O máximo é dois". Neste caso, mais uma vez, as estatísticas nacionais falam por si: o número de filhos por mulher é, em média, de 1,17.
"É lógico", estima Constantin, recordando a sua "infância soviética confortável", as creches e os centros de atendimento infantis vinculados à usina, os campos de escoteiros que custavam "uma mixaria", os livros escolares gratuitos, as roupas a preços acessíveis, as atividades musicais e desportivas "praticamente de graça". "Havia uma penúria", reconhece, "mas não no que diz respeito à maneira de ocupar as crianças. Tudo era feito no sentido de facilitar a vida dos pais". Todas as usinas daquela época fecharam. Com elas, desapareceram todas as vantagens das quais as famílias beneficiavam.
"O preço do jardim de infância aumenta sem parar. Em março, tudo indica que ele irá passar para 440 rublos por mês (R$ 44,00), enquanto o salário mínimo é de 600 rublos (R$ 62,40)! Além disso, no mesmo período, as horas de atendimento diminuem", constata o casal Demidov. Eles então criticam o não-respeito do código do trabalho por parte das empresas privadas, que procuram demitir as mulheres grávidas, a penúria de alojamentos, o custo da escola, teoricamente gratuita, mas na realidade paga, as ajudas de custos pagas pelo governo às famílias, de 70 rublos (R$ 7,34) por criança por mês, apenas para as famílias que vivem abaixo do limite de pobreza, o caso de um colega de classe que se tornou contramestre numa usina por 5 mil rublos mensais (R$ 524,80): "Se ele estiver com dores de dentes, ele nem pode ir ao dentista! Ele tem um filho, mas é impossível para ele ter um segundo!" Em conseqüência disso, na região, o número de abortos (7.691 em 2002) é superior ao número de nascimentos. "O aborto é o nosso meio de contracepção", afirma o jovem advogado.
Mais abortos que nascimentos
Na segunda maternidade mais importante de Veliki Novgorod, "a gente tenta dissuadir as mulheres de abortar, mas é muito raro que consigamos", admite Galina Baranova, a obstetra-chefe. Neste estabelecimento piloto, os pais podem assistir ao parto, enquanto a coabitação da mãe e do recém-nascido é autorizada, o que é raro na Rússia. Com isso, a situação melhorou um pouco: no final dos anos 70, havia nesta maternidade dois abortos para um nascimento, enquanto nos últimos tempos, houve 1,2 aborto para um nascimento. "A gente tenta sobretudo convencer as mulheres de mais de 30 anos que estão tendo a sua primeira gravidez", prossegue Galina Baranova. Os especialistas avaliam em "10% a 20%" o número de russas que se tornaram inférteis em conseqüência de um aborto.
Nessa região, a reviravolta demográfica remonta a 1979. Naquele ano, pela primeira vez, o número de mortes superou o dos nascimentos. O fenômeno então se acentuou com a queda da União Soviética, no início dos anos 90. Houve a chegada de novos imigrantes - russos provenientes dos países bálticos que se tornaram independentes, armênios fugindo da miséria -, mas o número de imigrantes nunca alcançou o dos emigrantes, que foram embora para outras regiões, para Moscou ou São Petersburgo.
Em 2003, a região pediu ao poder central uma quota de 1.500 trabalhadores imigrantes. Ela obteve apenas 700 deles, dos quais mais da metade são armênios. Acima de tudo, nada está detendo a enxurrada de mortes prematuras.
As doenças cardiovasculares constituem a causa principal de mortalidade. "Antes, elas atingiam as pessoas de mais de 55 anos, relata o médico em chefe do hospital regional, Magomed Assadoullaiev. Atualmente, os doentes são trintões". Depois, vêm os traumatismos e os envenenamentos. No serviço onde está hospitalizado Micha, o homem que caiu do seu terraço, um médico estima que "cerca de 80% dos traumatismos são vinculados ao alcoolismo". "Na maioria dos casos, são homens de menos de 40 anos, que são trazidos para cá, em conseqüência de brigas ou de acidentes do trânsito", precisa o médico. "Nós temos muitos pedestres bêbados que são atropelados", acrescenta o chefe de serviço, mas, em muitos destes casos, aqueles que estão dirigindo também estão bêbados.
"O alcoolismo é a nossa desgraça", lamenta um funcionário público encarregado da saúde. A taxa de casos de psicoses vinculadas ao alcoolismo é duas vezes superior aqui ao que ela é na escala da federação. "As pessoas bebem porque elas são depravadas!", garante, de maneira ríspida, este homem cujo escritório é decorado com um retrato de Lênin. Será que a situação econômica não seria em parte responsável por essa calamidade? "É preciso de dinheiro para beber", garante. "A economia nada tem a ver com isso! O problema é a cerveja. Há dez anos, ela não existia por aqui. Na época da penúria, víamos homens de 40-50 anos fazer fila para comprar cerveja. Agora, ela pode ser encontrada em todo lugar, ela é mais barata do que a vodka, enquanto a propaganda está onipresente."
Cinto de segurança para covardes
Em Veliki Novgorod assim como em muitas localidades da Rússia, a noção de comportamento de risco desenvolveu-se muito pouco. "O cinto de segurança e os freios são para os covardes!", diz uma brincadeira popular. Conforme afirma o doutor Assadoullaiev, "para a maioria das pessoas, a saúde não tem valor". Para a maioria das pessoas, também, a saúde tornou-se um luxo inacessível.
Teoricamente, os tratamentos são gratuitos. De fato, uma vez que se tornou impossível para os médicos viver do seu salário (R$ 209,18 para um principiante, R$ 1.247,77 para um chefe de serviço no hospital regional), um sistema paralelo foi implantado, ao qual os aposentados, entre outros, não têm acesso por falta de dinheiro.
A crise do sistema de saúde não pára por aí. Assim, os meios do hospital regional foram revistos para baixo. Há dois anos, o estabelecimento teve de se desfazer do helicóptero e do avião que permitiam anteriormente buscar os doentes nas regiões mais remotas. Quanto às zonas rurais, elas são tão carentes de médicos que a administração acaba de lançar um programa para incitar os jovens médicos a se instalarem no campo.
O censo comprova que um terço da população russa passou a viver nas 13 cidades de mais de um milhão de habitantes que existem no país. Na região de Veliki Novgorod, um terço dos habitantes residem, aliás, na capital do mesmo nome. E, para se ter uma idéia da dimensão do "deserto" que a cerca, basta sair da cidade, escolhendo, ao acaso, a direção de uma localidade chamada Louga...
A estrada, coberta por uma fina camada de gelo, atravessa em linha reta uma floresta deixada ao abandono. Após termos andado por 25 quilômetros, chegamos finalmente a uma aldeia: uma rua, perpendicular à estrada, à beira da qual estão alinhadas cerca de vinte casas de madeira. À primeira vista, não há uma alma viva. A neve não foi retirada da pista. A aldeia, coberta por um manto branco, dorme sob o sol, numa temperatura de -18°C.
19 sobreviventes
Alexandra Ivanovna vive aqui desde o final da Segunda Guerra mundial. Ela mora sozinha dentro de um casarão cuja foto poderia muito bem servir de capa para uma revista ocidental de decoração. Mas, por trás da fachada de madeira esculpida, é a miséria que resiste. Não há água corrente. Em contrapartida, há um telefone, que é o único em toda a área. "O meu marido era o presidente do kolkoze", explica a mulher idosa, que traja um lenço na cabeça, e "valenkis" - botas de feltro - nos pés.
Na época, havia cinco ou seis crianças em cada família, e a aldeia contava mais de trezentos habitantes. Hoje, sobraram apenas 19: cinco homens - "todos nascidos antes da Guerra" - e 14 mulheres - "a mais nova é a carteira; ela tem 52 anos". Alexandra Ivanovna, "que completará 79 anos em março", não consegue se lembrar ao certo quando a escola fechou. Em 1970, talvez, logo depois da transformação do kolkoze em sovkoze? Foi naquele momento que o êxodo começou. O sovkoze produzia batatas, linho, trigo, centeio. "Havia 40 hectares de campos cultivados aqui ao lado, recorda-se a dama idosa; agora, só sobraram ervas daninhas."
O censo mais recente indica que o número de vilarejos russos de menos de dez habitantes aumentou em 4 mil no espaço de 13 anos, e que 13 mil aldeias foram totalmente abandonadas. "Antes, vivíamos bem; agora, tudo ficou muito difícil. Escrevam isso, o quanto se vive mal por aqui!", ordena Alexandra Ivanovna. A sua aposentadoria, de 1000 rublos (R$ 102,76) não lhe permite comprar carne quando passa a quitanda ambulante, nem mesmo alimentar um porco: "Um porco come demais, não temos condições." Contudo, ela nem sequer cogita de deixar a sua aldeia, para ir viver com os seus filhos e netos em Veliki Novgorod. A senhora idosa permanecerá aqui, "esperando a morte".
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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